"Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido,
sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz,
aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes,
a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas
submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil,
à esperança sem vestígios.
Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele.
Vivo mais porque vivo maior.""Tudo me interessa e nada me prende.
Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo,
recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo,
não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa
foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei.
Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti,
pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu;
mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas,
o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra,
ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa
que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância
- irmãos siameses que não estão pegados.
""E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir,
não sei o que penso nem o que sou."
"Não há sossego - e, ai de mim!, nem sequer há desejo de o ter.
""São as pessoas que habitualmente me cercam,
são as almas que, desconhecendo-me,
todos os dias me conhecem com o convívio e a fala,
que me põem na garganta do espírito o nó salivar do desgosto físico.
É a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha,
é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes,
que me veste o traje de forçado, me dá a cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo."
Bernardo Soares, O Livro do Desassossego